sábado, 21 de junho de 2014

Morte Súbita em Lactente - SIC


Enfermagem Forense - Programa Rua Segura - CMTV


1º Seminário da APEFORENSE




Contributo do Prof. Genival França - Artigo

AIDS (SIDA) – um enfoque ético-político


Genival Veloso de França[1]


Resumo: O autor além de relacionar a AIDS com a situação atual, focaliza a gravidade desta doença e chama a atenção principalmente para os preconceitos em torno de seus aspectos epidêmicos e morais.  Insiste em dizer que é obrigação do poder público dar as condições necessárias para tratar esses doentes com a dignidade que merece a condição humana e relata as deficiências da legislação frente às diversas formas de relação com estes pacientes. Faz ver à sociedade que a única forma de vencer este mal é protegendo e amparando os que estão sendo atingidos.
                                                                                                               
Unitermos: Aids – enfoque ético-social. SIDA. Viremia.

Preliminares

            Em nenhum momento da existência humana se identificou um inimigo biológico tão sombrio e cruel, capaz de trazer mais desafios e de confundir tanto a opinião pública como a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS). Possivelmente, ainda vamos permanecer atônitos e perplexos por muito tempo, mesmo depois da descoberta do seu tratamento, porque inúmeras são as implicações dessa nova ordem no contexto das relações sociais. Nenhuma doença trouxe, no seu conjunto, tanta perplexidade e inquietação quanto a AIDS, seja no seu aspecto epidêmico, moral ou imunológico, seja no seu caráter incurável e letal. E não poderia ser de outro modo.

            No entanto, a partir do instante de uma reflexão mais atenta, começamos a enxergar uma multidão de fatos que alucina e dá à AIDS um rótulo maldito e fatal. E tão contraditória é a sua origem que não se tem ainda uma resposta imediata para justificar o seu aparecimento: se ela é ou não uma doença atual e qual a razão de sua rápida e trágica evolução. Seria ela uma nova doença tão ao gosto das correntes especulativas ou apenas a reorganização sistemática de uma propedêutica sobre o que já existia?

            Mesmo que a intuição científica nos dê a esperança de que estamos marchando para a cura da AIDS, muitas verdades médicas ainda não foram reveladas e o preconceito continua a crescer como uma avalanche medonha e avassaladora. O perigo de tal avanço é que essa doença saia do corpo dos pacientes e permaneça na imaginação de muitos, estigmatizada pela discriminação odiosa e fantasiada pelo imaginário que contamina os doentes, a sociedade e os próprios médicos. O risco, portanto, é se transformar a AIDS numa ficção, ou criar-se uma ideologia política autoritária capaz de promover o medo como controle social mais severo.

            Antes, mesmo fatal, a tuberculose era uma doença impregnada por uma aura romântica. A AIDS não. Ela tem um estigma comprometedor e pode se transformar numa síntese do mal, como se a natureza estivesse se vingando dos horrores do mundo. De uma maneira ou de outra, as doenças sempre foram usadas como metáforas contra a sociedade como quem emite uma ameaça.

            Quando se disse, no início, que ela seria uma entidade dos homossexuais, era de fato dos homossexuais porque apenas neles se procurou a doença. Depois, afirmou-se que podia ser ainda dos consumidores de drogas injetáveis e passou a ser igualmente deles. Agora, é também dos heterossexuais, e a sua incidência, segundo essa visão, é cada vez maior. Já se acredita que, sendo a AIDS uma virose clássica e tendo como via principal de contágio o ato sexual, e admitindo-se como verdadeiro que as pessoas são, em sua maioria, heterossexuais, no futuro, não muito distante, a prevalência dos pacientes e infectados seria de heterossexuais.

            O fato é que hoje, em toda parte, os portadores de AIDS enfrentam uma situação constrangedora. Sofrem o horror de uma doença que os estigmatiza no convívio social e os avilta na luta pelos meios de sobrevivência. São doentes marginais do desprezo e do abandono, mesmo dos que lhes são próximos. Negam-lhes tudo: o afeto, a estima, a solidariedade e, até, o direito de morrer com dignidade.

            Vejamos algumas situações:

A esterilização dos HIV – positivos

            Qualquer que seja o andamento da discussão que favorece a esterilização em casos de infectados pelo HIV, como proposta de inserção numa política de erradicação e controle, não subsiste como justificativa ética ou legal para legitimar essa prática, porque qualquer forma de insinuação eugênica traz sempre o ranço do constrangimento e as marcas da intolerância.

            Mais grave do que esterilizar um homem ou uma mulher contra sua vontade ou com falsas promessas, é invadir a intimidade de um ser humano, aviltando-o na sua dignidade e mutilando­-o nas suas funções, pois o sentido é unicamente privar a sociedade da responsabilidade, da vigilância e dos cuidados, pelo fato de ser o indivíduo portador muito mais de um estigma do que de uma doença.

O aborto da mulher infectada pelo HIV

            Mesmo que exista o risco de contaminação ou de doença do feto, não se permite legalmente nem se considera eticamente defensável a prática do abortamento da mulher infectada pelo HIV. O Código de Ética Médica em vigor, em consonância com a legislação penal brasileira, só admite o aborto em duas situações: para salvar a vida da gestante ou nos casos de gravidez resultante de estupro.

            Pelo fato de se tratar de uma matéria sem resposta definitiva, no que diz respeito à influência da sorologia positiva no processo gestacional e da própria saúde do feto, nossa opinião é que não existe nenhum argumento ético, jurídico ou técnico capaz de fundamentar a interrupção de uma gravidez numa portadora de HIV-positivo, a não ser que suas condições de saúde sejam seriamente agravadas pela gestação, que cessada a gravidez cesse o perigo e que não haja outro meio de salvar-lhe a vida.


A gestante HIV - positivo

            Ainda que diante de uma possibilidade de morte precoce, de sofrimento oriundo da doença, de riscos de contaminação do feto e de informações desestimuladoras, esses fatos nem sempre têm desanimado as mulheres com HIV-positivo na sua decisão de engravidar. Não se sabe ainda, por exemplo, a época exata da contaminação - se durante a vida intra-uterina ou se no momento do parto -, mas uma coisa é certa: a gravidez, nesta hipótese, não melhora nem piora as condições imunológicas das gestantes.

            Assim, seja qual for a entendimento que se tenha a respeito da transmissão, das formas de infecção e do mecanismo de contágio, o médico não pode impedir essa mulher de engravidar e ter seu filho, se esse é o seu desejo. Mas, tão-somente, oferecer-lhe todos os meios e recursos necessários e disponíveis para uma gestação nestas condições. Nenhum médico e nenhuma instituição de saúde podem negar-lhe assistência, pois isto é um ditame ético exigido a todos aqueles que professam a medicina, mesmo que possam ter um entendimento diverso sobre a questão, no seu plano conceitual e doutrinário.

            Qualquer que seja a posição no sentido de que todas as gestantes façam ou não o teste sorológico, ou apenas aquelas de comportamento de risco, dois fatos são imperativos: primeiro que o teste seja voluntário e que diante de sua negativa seja assegurado o acompanhamento do pré-natal e do parto; segundo que seja garantido o sigilo do resultado.

Atualmente muitos são os especialistas nesta área que apoiam a intenção dos soropositivos ter filhos a engravidar naturalmente, desde que respeitem determinadas condições de redução de riscos, entre fazer sexo desprotegido apenas na data provável  do período fértil; estar com carga viral baixa; ter o CD4 (células de defesa) elevado e não serem portadoras de outras doenças que agravem sua imunidade. Segundo estes especialistas se a carga viral estiver bem baixa e a doença sob controle rigoroso o risco de transmissão é praticamente zero. Todavia é preciso considerar que esta liberação não pode ser absoluta e que cada caso deve ser considerado de per si para que a possibilidade de um soropositivo ter um filho seja uma decisão segura.

A infecção pelo HIV e o recém-nascido

            Ninguém discute aqui o valor e a procedência do diagnóstico precoce da infecção, permitindo à mulher utilizar-se de processos contraceptivos capazes de evitar a gravidez em tal estado, ou como forma de orientação de cuidados pré ou pós-natal, no sentido de reduzir ao máximo o risco da contaminação do feto ou do recém-nascido, além dos procedimentos necessários ao infante eventualmente infectado.

Aqui também o exame deve ser facultativo, embora se deva registrar em prontuário a recusa da mãe gestante, principalmente se é ela do grupo chamado de procedimento de risco.

O sigilo, quanto ao resultado, torna-se da mesma maneira obrigatório.

O sigilo como instrumento social

            É imperioso lembrar que o sigilo médico é um direito do paciente, como forma definitiva de conquista da cidadania e somente a ele cabe abrir mão desse privilégio. A não ser nas duas outras situações que o Código de Ética Médica desobriga: por justa causa ou por dever legal. O paciente infectado pelo HIV não foge a essa regra.

            Se o paciente, neste particular, manifesta o desejo de que seus familiares não tenham conhecimento de suas condições, ainda assim deve o médico respeitar tal decisão, persistindo essa proibição de quebra de sigilo mesmo após a sua morte. No entanto, é providencial que se exija do portador do HIV-positivo a designação de uma pessoa de sua inteira confiança para servir de intermediário entre ele e quem o assiste, e que o paciente colabore no sentido de cientificar aos seus parceiros sexuais ou membros de grupo de uso de drogas injetáveis, no intuito de evitar a propagação do mal. Por outro lado, é obrigatória a notificação à autoridade sanitária de todos os casos com diagnóstico confirmado de AIDS. Não deve haver notificação dos casos de pessoas simplesmente infectadas pelo HIV.

            Destarte, só será permitida a quebra do sigilo profissional quando houver expressa autorização do paciente ou de seus responsáveis legais; por dever legal, nos casos de notificação compulsória dos portadores de AIDS à autoridade sanitária; ou, por justa causa, nas situações de proteção da vida e da saúde de terceiros: membros de grupos de uso de drogas injetáveis ou comunicante sexual, quando o próprio paciente recusar-se a fornecer-lhes informações quanto à sua condição de infectado.

            Se os infectados pelo HIV confiarem na preservação do sigilo das informações prestadas às equipes multiprofissionais que cuidam desses casos, e que somente na condição de doentes de AIDS haveria comunicação aos setores sanitários responsáveis, além da certeza do respeito à sua privacidade, estaria resolvida, em parte, a questão dos exames periódicos voluntários, contribuindo de forma significativa para o controle e a avaliação do quadro epidemiológico.

A Terceira Turma do STJ negou invasão de privacidade e indenização por violação de intimidade em recurso contra um Hospital de São Paulo no caso de um paciente que foi diagnosticado como portador do vírus HIV  pelo fato de o exame específico  ter sido solicitado por erro e sem o seu conhecimento.


O princípio adotado pela maioria foi o de que o direito à intimidade sucumbe diante de um direito maior, que é o direito à vida. O pedido já havia sido negado em primeira instância, entendimento confirmado no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).

O tribunal paulista considerou não ter havido nexo de causalidade (relação de causa e efeito) entre a conduta do hospital e o possível dano psíquico causado ao paciente. Afirmou ainda que neste caso não houve comunicação errônea de uma doença, mas tão-só a comunicação de um resultado efetivamente positivo, o qual não foi divulgado para terceiros e que seu conhecimento seria no sentido de beneficiar o doente.
 O paciente recorreu ao STJ insistindo que sua intimidade teria sido violada e que não seria necessário provar o nexo causal, pois ele não havia solicitado nem avisado do pedido do exame para pesquisa do vírus HIV.

Mesmo assim, a ministra Nancy Andrighi, relatora do processo, considerou haver negligência do Hospital, pois é indiscutível que houve erro no pedido de exame. Para a relatora, teria havido “investigação abusiva da vida alheia” e, portanto, uma agressão à intimidade. “A constatação da doença propiciar melhores condições de tratamento, por si só, não retira a ilicitude de sua conduta – negligente – de realizar exame não autorizado”. A ministra considerou que o paciente faria jus à indenização.

Entretanto, o ministro Massami Uyeda, em voto-vista, considerou não havido violação de intimidade. “Esse direito [à intimidade] não é absoluto, como aliás não é qualquer direito individual”, afirmou. Argumentou que há um direito maior a preservar no caso, seja no prisma individual ou  seja no coletivo, que é o direito à vida. Mesmo que o paciente não tivesse interesse ou desejo de saber sobre a enfermidade, a informação correta e sigilosa não ofenderia sua intimidade, diante do interesse maior à preservação da vida. Para este Ministro, já que houve interesse em realizar exames, é obvio existir interesse do paciente em preservar a própria saúde. O relator afirmou que não seria razoável que alguém, buscando saúde, alegue ter o direito de não saber ser portador de doença grave. Além disso, não haveria erro na conduta do hospital, apesar do engano nos exames. O hospital não poderia deixar de informar o paciente do resultado positivo, já que a busca pela saúde é o objetivo primordial da instituição. Sob o ponto de vista do interesse público, é essencial que o paciente de doença grave e transmissível, como a AIDS, tome providências para prevenir a disseminação do HIV. Acompanharam tal fundamentação os ministros Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino e o desembargador convocado Vasco Della Giustina (Fonte: STJ)



A inconveniência dos testes pré-admissionais

            Uma das formas de preconceito mais evidente, na relação com possíveis portadores do HIV, é a solicitação de exames pré-admissionais que se vêm impondo como condição de ingresso no trabalho, na escola e, até mesmo, no internamento hospitalar, na expectativa de surpreender indivíduos sorologicamente positivos.

            Entendemos que não existe qualquer justificativa técnica ou científica para tais exames. Quem necessita saber sobre esses resultados são os próprios indivíduos e as autoridades sanitárias que organizam suas campanhas e aditam as medidas e medem a extensão do problema. Agindo-se de tal maneira contra os soropositivos, além dos despropósitos ético e científico, o critério é humilhante e contrário aos interesses sociais, pois desagrega o indivíduo, empurrando-o para a marginalidade sem as possibilidades de trabalho, sem a assistência médica e sem as condições financeiras que favoreçam a sua sobrevivência.

            No que se refere à posição dos médicos de empresas ou de juntas oficiais, todas as informações obtidas sobre esse assunto devem ser transmitidas apenas ao paciente. Qualquer informação sobre o empregado ao empregador, limitar-se-á à aptidão ou à não-aptidão do trabalhador, e se temporária ou permanente para o desempenho de determinadas funções. A realização de testes sorológicos por imposição do empregador não encontra amparo ético ou legal, sendo esse assunto do interesse da autoridade sanitária.

Até mesmo o poder público reconheceu seu equívoco, ao decidir, na Portaria Interministerial nº 869, de 11 de agosto de 1992, dos Ministérios da Saúde e do Trabalho e da Administração, “proibir, no âmbito do serviço público, a exigência de testes de detecção de vírus da imunodeficiência adquirida, tanto nos testes pré-admissionais quanto nos exames periódicos de saúde”. Considerou que a sorologia positiva não acarreta prejuízo da capacidade laborativa do seu portador, que os convívios social e profissional com portadores do vírus não configuram situações de risco, que a solidariedade e o combate à discriminação são formas obtidas pela  sociedade para minorar o problema e que essas situações devem ser conduzidas segundo os preceitos da ética e da ordem pública.

            O Conselho Federal de Medicina determinou, através da Resolução CFM nº 1.359/92, que é vedada a realização compulsória da sorologia para HIV, em especial como condição necessária à internação hospitalar, pré-operatório, exames pré-admissionais ou periódicos e, ainda, em estabelecimentos prisionais.

            Por fim, é bom enfatizar que a identificação de pacientes HIV-positivo em internamento hospitalar é uma estratégia sem muita sustentação moral e nenhuma argumentação técnica, pois, na urgência cirúrgica, onde os aludidos riscos seriam mais evidentes, não haveria tempo para esperar o resultado sorológico. Haveria ainda o risco dos pacientes com esta viremia não serem atendidos. Os pacientes, por sua vez, notadamente os submetidos a procedimentos invasivos, teriam também o direito de exigir, com muito mais razão, o teste dos médicos.

O que se deve exigir é um conjunto sério de cuidados na proteção de todos os profissionais de saúde, com enfoque para aqueles casos em que a contaminação sangüínea seja possível. No entanto, se alguma instituição quiser exigir a triagem sorológica dos pacientes não-emergênciais, para que esse modelo venha ser eticamente discutível, é necessário que o exame seja voluntário e informado, que o paciente ao não aceitar o teste não sofra qualquer prejuízo na qualidade da assistência requerida, e que o paciente positivo tenha garantia do sigilo em relação ao resultado do exame.

O problema do menor infectado em estabelecimentos correcionais

            Das tantas complexidades do problema, certamente a mais complexa é a do posicionamento a ser adotado pela equipe médica, em face da solicitação de autoridade judicial ou administrativa, sobre o fornecimento de dados relativos a menores infratores e detentos do sistema correcional, portadores de sorologia positiva para o HIV.

            Em primeiro lugar, o médico não deve revelar às autoridades administrativas dos sistemas correcionais a identidade dos menores infratores com sorologia positiva. Não estaria justificada a quebra do sigilo pela suposta necessidade de adoção de medidas profiláticas, pois de nada adiantaria tal identificação, quando se sabe não existir nenhum procedimento que possa trazer benefícios ou que respeite a dignidade do menor, aumentando, isto sim, os riscos de segregação e de hostilidade. O que se deve fazer urgentemente é melhorar as condições do atendimento nessas instituições, hoje tão precárias e desumanas.

Depois, achamos conveniente revelar o fato aos pais, aos seus responsáveis legais ou ao juiz de menores, por entender que aquele interno não tem a capacidade de avaliar seu problema e de conduzir-­se por seus próprios meios para solucioná-lo, como recomenda o artigo 103 do Código de Ética Médica.

            E, por fim, acreditamos ser necessária a revelação do segredo à equipe multidisciplinar, que trata também do menor, por considerar que a solução do problema não é da exclusiva competência médica, mas de tantos outros profissionais, os quais, também, estão sujeitos à obrigatoriedade do sigilo.

A postura do médico infectado

            O médico infectado, como todos os pacientes, tem o direito à privacidade, ao sigilo e ao respeito que toda pessoa merece, não se podendo privar dele suas atividades no convívio social e do trabalho, respeitadas, é claro, as condições que seu estado de saúde permite e o tipo de atividade exercida.

            Por outro lado, não se pode aceitar as recomendações do Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC), a partir de possibilidades remotas de transmissão do HIV, quando trata dos profissionais de saúde infectados. Em primeiro lugar, não há razões de ordem técnica ou moral para a realização sistemática e compulsória de sorologia anti-HIV em profissionais mais expostos, pois o risco de contaminação em alguns casos é quase nulo. Discute-se se existe ou não a necessidade da comunicação aos pacientes sobre a condição sorológica dos médicos infectados, que possam se envolver nos chamados procedimentos invasivos (atos sujeitos a risco de contaminação por perfuração acidental percutânea do profissional, por meio de contato do seu sangue com tecidos do paciente). Entendemos que sim: o médico deve dizer ao paciente que é portador do HIV-positivo.

Também não se vê a necessidade do impedimento de profissionais infectados de trabalharem normalmente em tarefas compatíveis com as suas condições de saúde e com a modalidade de trabalho exercido sem risco de contaminação.

No entanto, recomenda-se que o médico portador da sorologia positiva para HIV, sponte sua, evite ou tome determinados cuidados com certos atos, principalmente nos procedimentos invasivos ou na manipulação de instrumental cortante ou perfurante capaz de passar sangue, acidentalmente, para o paciente, mesmo tendo em conta a probabilidade mínima de contaminação nesses casos. Não se considera errado o fato da direção do corpo clínico discutir, caso a caso, a participação de cada profissional reconhecido como infectado, a partir do momento em que se constatam atitudes mais imprudentes por parte do médico em questão, pois deixar o problema sem nenhum controle também seria uma conduta irresponsável.

Em suma, o médico infectado pelo HIV, como qualquer outra pessoa, deverá ter sua privacidade. Todavia, em procedimentos invasivos, o médico que conhece seu estado sorológico está obrigado eticamente a levar o fato ao conhecimento das equipes de suporte e orientação.

Sendo o médico não-infectado e o paciente reconhecido como portador de sorologia positiva, havendo acidente em procedimento invasivo ou acidente com instrumental cortante ou pontiagudo, o médico tem que procurar aquelas equipes de orientação e submeter-se ao exame sorológico necessário.
           
A postura do médico ante os doentes e infectados pelo HIV

            Nenhum médico pode recusar o atendimento profissional a pacientes portadores do vírus da imunodeficiência humana, pois essa assistência representa um imperativo moral e histórico da profissão médica. Assim se reporta em tom dogmático a Resolução CFM n° 1.359, de 11 de novembro de 1992.

            Levando em conta que a medicina é uma profissão voltada para a saúde do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem nenhuma forma de discriminação, que a AIDS continua avançando e mudando seu perfil epidemiológico quando agride os diferentes grupos populacionais e que o impacto da doença é medonho e limita o paciente, vulnerando-o física, moral, social e psicologicamente, tem-se de admitir que a obrigatoriedade do atendimento há de ser extensiva a todas as instituições de saúde, sejam elas públicas, privadas ou ditas filantrópicas.

            É preciso também que esse atendimento seja integral e compatível com as normas de bio-segurança recomendadas pela Organização Mundial da Saúde e pelo Ministério da Saúde, e, por isso, não se pode aventar qualquer forma de desconhecimento ou falta de condições técnicas para recusar a assistência. Essas instituições devem também propiciar a todos os profissionais de saúde condições dignas para o exercício da profissão, inclusive os recursos para a proteção contra a infecção, com base nos conhecimentos científicos disponíveis. A garantia dessas condições de atendimento é da responsabilidade do Diretor Técnico de cada estabelecimento de saúde.

            Sobre os infectados pelo HIV, como já foi dito, o sigilo deve ser integralmente mantido, e isso implica, entre outros, os casos em que o paciente deseja que sua condição sorológica não seja revelada sequer aos familiares, continuando esse direito de manutenção do segredo mesmo após a morte do assistido (ver Declaração de Viena, sobre “Responsabilidade profissional dos médicos que tratam de pacientes com AIDS”, adotada pela 40ª Assembléia Geral da Associação Médica Mundial, em setembro de 1988, na Áustria).


A infecção pelo HIV e o paciente que vai morrer

            No que se refere ao paciente terminal, acometido de AIDS, a conduta médica deve ser a mesma que se recomenda para todos os pacientes na situação de insalvável. Deste modo não há como se permitir qualquer postura que não seja a da obrigação à assistência e aos  cuidados médicos e  de enfermagem, fisioterapia e nutrição, para uma  sobrevivência  confortável  e  sem sofrimento físico ou psíquico, ainda que  paliativos,  independentes da vontade dos familiares, a qual não pode sujeitar o profissional a atitudes de confronto com sua consciência, com a norma legal e com seu Código de Ética.

A criminalização pela transmissão sexual do HIV

Como se sabe, vem surgindo no Congresso Nacional, vez por outra, projetos de lei onde se propõe a criminalização da transmissão sexual do HIV. Não há o que negar tratar-se de mais uma proposta que outra coisa não contribui se não na oficialização do preconceito contra pessoas soropositivos além de dificultar a procura pelo teste do vírus da AIDS. Acrescente-se a isso a ação de caráter repressor, sem qualquer justificativa técnica, profilática ou pedagógica e a consequência disso é que a procura espontânea e não criminalizadora pela testagem afastariam os infectados e os privariam do devido acompanhamento médico.

Alem do mais, desnecessária é a edição de novas leis para considerar como crime a contaminação de moléstias graves ou de doenças venéreas que sabe ou deve saber que está contaminando, porque isto já existe com ênfase recente no capitulo do Código Penal quando trata dos crimes contra a dignidade/e a liberdade sexual.


As deficiências da legislação brasileira

            Partindo do princípio de que as questões de saúde pública, principalmente, representam um direito inerente à cidadania e uma irrecusável e fundamental obrigação do Estado, cabe, através de uma estratégia bem articulada junto ao Sistema Único de Saúde, uma atenção redobrada à prevenção, ao diagnóstico e ao tratamento da AIDS, assim como uma abordagem mais séria em favor dos infectados pelo HIV.

            Ninguém pode desconhecer que esta doença é uma entidade sorológica grave, de evolução rápida e caminhando quase sempre para a morte e que, em face das suas características epidemiológicas, tende a se transformar num sério problema de saúde pública, necessitando de um encaminhamento que não exclua a participação de todos no seu controle e prevenção. Assim, impõe-se, antes de tudo, a participação democrática de todos os segmentos organizados e representativos da sociedade, a fim de pressionar o Estado a assumir por decisão política, uma postura capaz de garantir a mais ampla cobertura sobre o problema.

            Atualmente, muitos são os países que contam com normas específicas que regulam os direitos dos pacientes aidéticos e dos infectados, desde a proibição da rejeição de crianças sorologicamente positivas em escolas e creches, até a censura aos pedidos de testes para o HIV de pacientes em internamentos hospitalares.

            Primeiro é necessário que se assegure a estes pacientes o acesso ao tratamento adequado, seja no ambulatório, no hospital ou no domicilio, incluindo nisso o fornecimento gratuito de medicamentos específicos e eficazes no tratamento da AIDS, aprovados pelo Ministério da Saúde, a fim de que essas necessidades não se transformem em "casos de polícia". Defendemos também a idéia, embora criticada por alguns, de que se estipule em cada hospital público ou privado, qualquer que seja sua especialidade, um número mínimo de leitos para tratamento desses pacientes, como forma de impedir que eles sejam rejeitados no internamento, por motivo de discriminação ou má vontade, mesmo sabendo da disponibilidade de leitos em nosso país.

            Advogamos também a idéia de não se criarem leitos exclusivos aos pacientes apenas infectados pelo HIV, que por ventura se internem nos hospitais para tratamento clínico ou cirúrgico, pois inevitavelmente seriam discriminados, convertendo-se em expediente vexatório, hostilizante e segregador.

Nessa legislação deve ficar bem claro o direito que tem o paciente HIV-positivo da manutenção do sigilo médico, do respeito à sua privacidade, do impedimento de demissão sem justa causa do seu trabalho, da proibição da divulgação do seu nome ou de seus parentes em listas de resultados de exames e do direito de ter atendidos seus exames complementares quando pedidos pelos seus médicos assistentes.

            É necessário ainda que se estipulem em espaços gratuitos nos meios de comunicação a divulgação dos interesses e garantias dos pacientes aidéticos a todos os seus direitos trabalhistas, previdenciários e administrativos, além de assistência jurídica gratuita, acesso fácil e sem ônus ao tratamento dos hemofílicos como forma de prevenção à AIDS, o direito de receber visitas no hospital, de atendimento médico de urgência e de intercorrências clínicas e o de ter seu corpo velado em locais e condições respeitosas, de acordo com a reverência que se deve à dignidade humana.

            Outro fato é o da criação de serviços de diagnóstico gratuitos, estimulando-se assim os indivíduos à procura de exame específicos, sem nenhum ônus e cujos resultados sejam dados através de meios que não identifiquem o paciente, mantendo-se o respeito à sua privacidade. Essa seria uma forma de fazer com que um maior número de pessoas procure esses exames.

            Proibir, de uma vez por todas, não através de uma portaria, mas por meio de uma lei, a exigência de testes sorológicos para o HIV aos candidatos de concurso público ou ao acesso a empresas privadas, mesmo sabendo que um mandato de segurança, neste particular, seria um remédio tranqüilo e eficaz.

            Ficar evidente também na legislação, a proibição da exigência de testes compulsórios de sorologia para o HIV, como condição obrigatória de internamento hospitalar, pré-operatório, assim como nos indivíduos recolhidos em estabelecimentos penitenciários, ou de internação, antes de serem recolhidos. Isto não tem nenhum subsídio técnico ou científico, nem ajudaria em nada esse problema, a não ser fomentar a discriminação e a intolerância.

            Finalmente, é necessário que se estipulem em lei especial as determinações da Resolução nº 1.401/93, do Conselho Federal de Medicina, nas quais ficam obrigadas as empresas de seguro-saúde, de medicina de grupo ou as cooperativas médicas, prestadoras direta ou indiretamente de assistência médico-hospitalar, ao atendimento de todas as enfermidades relacionadas no Código Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde, não podendo impor restrições, quantitativas ou de qualquer natureza.

Conclusão

            Se quisermos efetivamente lutar e vencer esse mal, devemos, em primeiro lugar, não procurar explicações absurdas para justificar nossa indiferença e as nossas limitações. Depois, ficar ao lado dos que estão sendo vitimados pelo flagelo da AIDS, neste instante tão amargo da história da humanidade. Toda vez que discriminamos as vitimas, fortalecemos mais e mais este mal.

            Mesmo admitindo-se que esta doença seja, em parte, uma invenção nossa, ninguém pode escamotear a sua gravidade como entidade epidêmica, que agride o sistema imunológico de forma complexa, de assustadora rapidez e, até agora, incurável. E quando ela ficar privada de sua marca discriminadora e escapar de sua fatalidade, certamente a metáfora da AIDS perderá seu sentido.

            Urge, ainda - hoje, mais do que nunca - exigir do poder público as condições necessárias para tratar esses doentes com a dignidade que merece a condição humana, e fazer ver à própria sociedade que a única forma de vencer essa doença é protegendo e amparando os que estão sendo atingidos. E também denunciar todas as injustiças cometidas, mitigando as suas dores e compreendendo sua dolorosa solidão na hora do sofrimento e da morte.

            A cura virá, não igualmente para todos. Mas virá. É apenas uma questão de tempo.

            Esta e outras epidemias passarão. Assim está escrito. O que fica, infelizmente, é o registro da indiferença que o homem carrega consigo mesmo e da falta de convicção de que seu destino está inexoravelmente preso ao destino do seu semelhante. Se não, cabe uma mea culpa universal.




[1] Membro da Junta Diretiva da Sociedade Ibero-americana de Direito Médico (SIDEME).