quinta-feira, 16 de novembro de 2023
CRIMINALÍSTICA BIOLÓGICA
Criminalística é a ciência que estuda os indícios deixados no local do delito, permitindo estabelecer, nos casos mais favoráveis, a identidade do criminoso e as circunstâncias do crime. O êxito do trabalho laboratorial depende da forma como os vestígios foram recolhidos, acondicionados e enviados. Para a análise do ADN é necessário qualquer tipo de mancha ou produto que contenha material genético. Os vestígios encontrados com mais frequência, com interesse médico-legal, são as manchas do sangue e sémen.
Sangue
O sangue é o tipo de amostra mais frequentemente analisada, tanto no estado líquido como em mancha seca. O ADN é extraído dos leucócitos do sangue, uma vez que os eritrócitos são células anucleadas.
Tais manchas podem encontrar-se em suportes porosos e absorventes existentes na cena do crime, como sofás, tapetes, alcatifas e mesmo na roupa da vítima ou do autor do crime; ou em suportes não porosos como, por exemplo, diferentes tipos de revestimentos de chão ou paredes de residências, vidros ou cerâmicas.
Caso Clínico 1: No decurso de uma investigação de atropelamento, foi solicitado um exame comparativo a partir de uma amostra de sangue.
Por vezes acontece em casos de condução sob influência de álcool, trocas de valores de alcoolemia. Um exemplo é o caso de um atropelamento de uma criança em que é pedida a alcoolemia aos intervenientes, cujo resultado indicou um valor de 3g/L numa criança. Isto é impossível, uma vez que uma criança de 5-6 anos, com este nível alcoolemia não conseguia andar a passear. Neste caso, o que fazer?
Muitas vezes, nestes casos, é necessário fazer a identificação da mancha ou do sangue de onde foi retirada a alcoolemia para saber quem corresponde a quem.
Sémen
O sémen (suspensão de espermatozóides no líquido seminal) é a seguir ao sangue o vestígio mais estudado, o que se deve ao facto de haver muitos casos de suspeita de agressão sexual.
O ADN a analisar é extraído dos espermatozóides. Por isso, é conveniente efectuar, em primeiro lugar, uma confirmação microscópica da sua existência na amostra. É, também, prática corrente efectuar o teste ou reacção de Brentamina, cuja reacção positiva (presença de células seminais, mesmo na ausência de espermatozóides) se traduz no aparecimento de uma coloração púrpura, numa mancha que se suspeita ser de sémen, depois da aplicação do reagente.
Depois da extracção do ADN do vestígio biológico ou dos exsudados vaginais ou anais, procede-se ao estudo da amelogenina. A amplificação do gene homólogo da amelogenina X-Y, permite concluir que quando estão presentes células masculinas aparecem duas bandas, uma específica do cromossoma X e outra característica do cromossoma Y.
Na grande maioria dos casos estudados, a amostra presente para exame é o exsudado vaginal da queixosa, que é colhido aquando do exame efectuado no Serviço de Clínica Médico-legal. No entanto, também pode haver sémen em peças do vestuário da vítima ou do agressor ou, ainda, no local onde ocorreu a violação.
O facto das amostras de sémen poderem estar misturadas com outro tipo de produtos biológicos da vítima ou de haver mistura de sémen de dois ou mais indivíduos, não constitui problema para a resolução dos casos. Actualmente, há metodologias que permitem a separação eficiente do ADN dos espermatozóides do ADN das células do epitélio vaginal da violada e, no caso de mistura do sémen de mais de um indivíduo, a análise do ADN possibilita a detecção e identificação dos indivíduos.
Quando existem 2 componentes masculinos numa zaragatoa vaginal de uma alegada vítima de violação, este facto pode reflectir 2 cenários - ou estão implicados 2 indivíduos na agressão sexual ou um dos componentes reflecte uma relação anterior consentida. Este é um exemplo de como a história é importante, nomeadamente, saber há quanto tempo a vítima teve a última relação sexual consentida.
Outros vestígios
Os pêlos são outro tipo de vestígio biológico frequentemente analisado. Estes podem aparecer em peças de vestuário, nas mãos da vítima, ou ainda na cena do crime e deverão ser recolhidos e acondicionados com precaução, pois podem ser provenientes de pessoas distintas.
O ADN dos pêlos está particularmente concentrado na raiz, razão pela qual os arrancados fornecem melhores resultados, pois, na generalidade dos casos, possuem células do folículo piloso, o que permite obter ADN em maior quantidade. Aquando da realização da extracção do ADN de pêlos deve-se ter em consideração o facto da existência de melanina na sua composição. Esta constitui um factor inibidor da amplificação, pelo que se deve, preferencialmente, usar apenas as raízes.
A saliva e a urina não contêm células na sua constituição, mas por transportarem células epiteliais, respectivamente da cavidade bucal e das vias urinárias, possuem ADN. As amostras que tenham saliva, como filtros de cigarros fumados, garrafas ou latas de refresco e ainda selos ou envelopes, são susceptíveis de identificar o autor do crime.
A urina possui bactérias e outros agentes contaminantes que dificultam a obtenção de resultados. Relativamente às fezesos resultados são ainda mais escassos, porque, na grande maioria das vezes, não possuem material genético susceptível de ser analisado e têm na sua composição elementos que impedem o êxito do estudo.
A identificação de restos cadavéricos através do estudo do material genético depende do estado de preservação o qual, varia com o tempo decorrido desde a morte e de outros factores ambientais, sendo os mais adversos a humidade e a temperatura. Se estes restos forem encontrados submersos a possibilidade de se conseguir bons resultados é remota, uma vez que o estado de degradação é muito maior. Como na maioria dos casos não se dispõe de sangue, o material que se estuda é músculo ou osso, mesmo que tenha decorrido bastante tempo após a morte.
Como restos postmortem também se podem estudar os dentes, que representam elementos importantes na identificação genética em casos de incêndio, em que as partes dos organismos mais preservadas são as peças dentárias.
Os restos cadavéricos disponíveis, quando a morte tiver ocorrido há bastante tempo (normalmente mais de 5 anos), são os ossos, uma vez que os tecidos moles já desapareceram e os dentes e os cabelos, se ainda existirem, possuem quantidades diminutas e degradadas de ADN.
O material fetal é usado, na maioria dos casos, no esclarecimento de casos de investigação biológica da maternidade, em que há suspeita do feto ter sido abandonado pela mãe ou quando a gravidez tiver resultado de violação, se tiver sido feita a interrupção da mesma.
As amostras procedentes de tecidos fetais devem ser rapidamente congeladas para evitar a sua degradação. Não se devem adicionar conservantes, como álcool ou formal, pois estes produtos alteram de uma forma irreversível os componentes celulares.
Caso Clínico 2:
Relativamente a este ponto, a professora referiu que é muito comum serem-lhes entregues fetos, encontrados por exemplo, no caixote do lixo ou na canalização, para determinação da identidade. No instituto estes fetos são estudados, primeiro do ponto de vista antropométrico e depois do ponto de vista genético.
A professora referiu um caso em que receberam dois fetos, encontrados numa lixeira, mais ou menos ao mesmo tempo e com aproximadamente 5 meses cada. A GNR enviou os fetos para o instituto com a suposição que ambos tinham os mesmos progenitores. Não existiam suspeitos, nem presumíveis pais identificados. No instituto, através dos fémures dos fetos fizeram um perfil genético de cada um, os quais colocaram num programa de estatística.
Foi pesquisada a possibilidade de terem o mesmo pai e a mesma mãe, o que não se verificou. Excluindo essa hipótese verificaram a possibilidade de terem um dos progenitores em comum, o que obteve uma probabilidade de 10%, ou seja, excluiu-se também essa hipótese. Por fim, foi calculada a probabilidade de não terem relação de parentesco biológico entre eles, com um resultado de 99%. Após a obtenção destes dados, a conclusão foi que aqueles dois fetos de 5 meses não tinham relação biológica entre eles, podendo ter sido abandonados no mesmo local, na mesma altura por uma parteira.
Colheita e armazenagem de amostras biológicas
Degradação
Os principais factores que provocam degradação do ADN são o tempo, a temperatura, a humidade e a luz (solar e raios UV). A degradação pressupõe a não obtenção de resultados e nunca o aparecimento do um genótipo distinto daquele que corresponderia à amostra.
Algumas vezes a degradação em vez de impedir a obtenção de resultados pode ocasionar a visualização de um único alelo em vez de dois, sendo mais frequente que desapareça o alelo de maiores dimensões. Por isso, quando se analisam vestígios com uma certa antiguidade e se obtém homozigotia para alguns sistemas deve-se ter cuidado na utilização desses resultados, pois podem ser heterozigóticos.
Para se evitar a degradação deve-se promover a secagem completa do vestígio antes do seu acondicionamento (colocar em embalagens próprias - envelopes, pequenos sacos de papel de celofane, etc.) e armazenagem, que deve ser efectuada a baixas temperaturas.
Contaminação
Deve ser evitada qualquer tipo de contaminação que interfira na análise. Uma das exigências a ter sempre presente pelo perito, entre outras, é a uso de luvas descartáveis.
Pode-se definir vários tipos de contaminação:
ð Contaminação química;
ð Contaminação provocada por microrganismos (bactérias e fungos);
ð Contaminação por outro ADN humano - Este é o tipo do contaminação mais importante, que pode ocorrer durante ou depois da colheita das amostras.
É importante saber distinguir ‘mistura de amostras’ e “amostra contaminada”. A primeira é uma amostra que contém ADN de mais do que um indivíduo, em que a mistura ocorreu antes ou durante a prática do crime. A segunda é aquela em que o material contaminante foi depositado durante a colheita da amostra, acondicionamento, manuseamento, armazenagem ou análise. Usando a técnica de PCR, provavelmente serão detectadas pequenas quantidades de amostra contaminante, podendo-se inclusivamente identificá-la;
ð Contaminação por outras amostras - Este tipo de contaminação pode ocorrer depois da secagem e armazenagem, quando a perito manuseia as amostras.
Colheita de vestígios
ð Vestígios transportáveis - colheita directa dos vestígios.
ð Vestígios não transportáveis - remoção do vestígio para um suporte onde seja possível realizar a extracção do ADN. Normalmente usa-se pano branco, lavado, ligeiramente humedecido com água pura.
Quando se colhem evidências deve também colher-se uma pequena quantidade de suporte, adjacente às manchas, que irá funcionar como controlo negativo.
Preservação das amostras
Uma vez colhida a amostra deve deixar-se secar ao ar e acondicioná-la na ausência da humidade, para que mantenha as suas características. Posteriormente, deve ser armazenada a baixas temperaturas, evitando-se as flutuações de temperatura e humidade.
Avaliação da amostra
Devem ser efectuados testes no sentido da confirmação da natureza da amostra. Se se tratar de uma amostra biológica pode-se determinar a quantidade e qualidade do ADN extraído.
Actualmente, a maioria dos laboratórios apenas efectuam técnicas de PCR, ao contrário do há alguns anos em que se usava o estudo do ADN via RFLP.
A sensibilidade do PCR permite a análise de fragmentos com apenas algumas centenas de pares de bases e em pequena quantidade (0.2ng – 0.5ng). Nos casos de violação aquele número de fragmentos pode equivaler a escassas centenas de espermatozóides ou a uma pequena mancha do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Relatório pericial em Criminalística
A resolução dos casos médico-legais do âmbito da criminalística implica, na maior parte dos casos, o estudo de vestígios biológicos e a comparação das suas características genéticas com as da vítima e suspeito ou suspeitos.
A conclusão deste tipo de perícia médico-legal é muito mais complexa do que os casos de investigação de filiação, uma vez que nestes últimos o perito colhe quantidade suficiente de sangue aos intervenientes para a realização do estudo e as amostras são preservadas nas condições ideais (arca congeladora a -200C ou a temperaturas inferiores). Por outro lado, os vestígios recebidos para a resolução de casos ligados a criminalística são de diferentes origens (manchas de sangue, esperma, pêlos etc.), para além de que as suas quantidades são pequenas e o seu estado de conservação é deficiente, na maior parte dos casos.
O relatório neste género de perícia deve ser exaustivo, referindo e descrevendo todo o material recebido, técnicas usadas na extracção do DNA, métodos do tipagem e resultados obtidos. As conclusões devem incluir as comparações das características genéticas dos vestígios com as características do sangue do suspeito ou suspeitos e vítima, para além de poder incluir a valorização da prova em termos de “likelihood ratio” ou probabilidade de concordância. A valorização da prova pressupõe que haja coincidência entre os genótipos do vestígio e os do suspeito.