Resumo:
O autor chama à atenção para os procedimentos coercitivos contra os pacientes
que tenha conotação humilhante e desumana. Considera a prática da chamada
castração química como desnecessária e inconstitucional. Acrescenta que o
Estado tem remédios efetivos através de leis específicas sobre os crimes contra
a dignidade sexual A posição do corpo clínico de uma unidade saúde sobre a
questão.
No momento em que o país se defronta com uma assustadora onda de
violência e criminalidade, surge mais uma idéia simplista, própria das mentes
apressadas, no sentido de instituir a chamada castração química como
solução para coibir certos crimes contra a dignidade sexual, notadamente o
crime de pedofilia. Tenta-se institucionalizar mais esta forma de violência,
agora sob o eufemismo de “tratamento hormonal de inibição da libido”, o que não
pode deixar de merecer a devida
censura, ainda que se tenha a duvidosa “autorização” do infrator.
Vem se chamando castração química uma forma temporária
de inibição do desejo sexual através da aplicação de medicamentos,
principalmente à base de hormonios
feminino. Esta modalidfade de pena já vem sendo utilizada em alguns países como
os Estados Unidos e o Canadá e agora em
fase de de implantação na França e na Espanha.
Um dos
projetos que tramita no Senado Federal daria ao pedófilo de primeira
condenação, quando beneficiado pela liberdade condicional, a condição de optar
por esta forma de tratamento hormonal antes de deixar a prisão, sem prejuízo da
pena aplicada. A partir da segunda condenação, quando beneficiado pela
liberdade condicional, tal infrator seria obrigado a submeter-se à castração
química. Não há nenhuma dúvida que isto
representa um gesto atentatório à condição humana, um vilipêndio aos direitos
de cidadania e uma preconceituosa e discriminatória medida, transformando
alguém, sentenciado ou não, num cidadão de terceira ou quarta classe, além do
que representaria uma fragorosa violência às principais Convenções Internacionais
que disciplinam sobre a proteção aos direitos humanos e à dignidade da pessoa,
nos quais o Brasil é signatário.
O
fato de alguém ser apenado ou recluso sob a tutela judicial - qualquer que
tenha sido sua infração ou qualquer que seja o tamanho da revolta de alguém -,
não autoriza quem quer que seja a usar de meios degradantes, desumanos ou
cruéis, ou ser conivente com tais práticas.Esta era
uma das práticas utilizadas na época obscura dos campos de concentração
nazistas e pode se constituir no início de uma série de medidas, justificadas
de forma aparentemente protetora da sociedade, mas que colide com o caminhar
dos povos democráticos em favor dos Direitos Humanos.
Tal
modalidade de tratamento, que tenta mascarar a personalidade do paciente, além
de agredir física e psiquicamente a quem se submete a ele pela feminilização e
outras perturbações ainda não suficientemente comprovadas cientificamente,
agride a dignidade humana e abre espaço para outras violações que não se
recomendam dentro das concepções de um Estado Democrático de Direito, que tem
como fundamentação o respeito irrestrito à lei. Este tipo
de procedimento não deixa de ser apontado como forma de tratamento desumano,
cruel e degradante, tão condenado pela Carta das Nações Unidas em favor dos
direitos e liberdades fundamentais da pessoa humana. E mais: estamos regredindo
à adoção de penas corporais com conotação ultrajante. Podemos
até acreditar que tal processo não se constitua uma forma de tortura no sentido
de fazê-lo sofrer os padecimentos da dor. Mas é uma maneira indisfarçável de
ato desumano e ultrajante. Leia-se a Declaração de Tóquio, adotando linhas
mestras para os médicos, com relação ao tratamento degradante e desumano a
detentos e prisioneiros (Anexo 2, artigo 1°): Qualquer ato de tortura, ou outro
tratamento, ou castigo cruel, desumano e degradante, é uma ofensa à dignidade
humana e será considerado como uma negação aos propósitos do C entro das Nações
Unidas e como violação dos direitos e liberdades fundamentais da Declaração
Universal dos Direitos Humanos”. Não
se admite também a alegação de que o tratamento médico será feito dentro dos
padrões que a nova medicina permite. Mas a alma, mesmo a alma mais desgraçada
de um homem não pode ser atormentada por quem exerce o nobre mister de fazer
justiça.
A
consciência dos que sofreram e reagiram, e ainda hoje maldizem os tempos da
ditadura - pois era de forma degradante e desumana que se tratavam homens,
mulheres e jovens quase crianças-, não pode concordar com isto. Muitos foram
tratados através das mais torpes e degradantes sessões de tortura que encheram
de espanto os subterrâneos habitados pela desgraça e pelo terror. Entre
outros, considere-se que muitos destes atentados contra a dignidade sexual,
principalmente a pedofilia têm um componente psíquico grave e por isso não pode
ser tratada com hormônios femininos e que seu uso temporário tem apenas um
efeito duvidoso e paliativo, sem esquecer ainda os sérios e graves efeitos
colaterais oriundos de tal terapia. O que se deve fazer é estabelecer uma
política mais efetiva no sentido do cumprimento das penas estabelecidas em lei,
muitas delas de efeito rigoroso, necessitando tão somente de sua efetiva
aplicação em estabelecimentos apropriados.
Ninguém é
indiferente aos atentados sexuais, principalmente
contra crianças e adolescentes, sejam eles praticados por indivíduos
isolados, sejam por grupos criminosos que se organizam na exploração
sexual. E também ninguém é favorável que os autores deste tipo de delito
fiquem impunes. Ao contrário, aqueles que comprometerem ou lesarem os direitos
individuais ou a ordem pública devem merecer penas que afetem a sua liberdade e
protejam o bem comum. Mas tudo isso sem se afastar das regras de civilidade que
se espera do uso racional e do equilíbrio da justiça, com o objetivo precípuo
na recuperação e na ressocialização do detento.
Quando se
considerou determinados crimes como hediondos e se deu penas graves, isto não
se fez afastar dos limites constitucionais. A pena de castração seria, sem dúvida
alguma, uma quebra deste postulado e a adesão aos procedimentos degradantes e
desumanos. E muito pior: seria uma forma disfarçada de se oficializar a
tortura, o arbítrio e a prepotência. Pelo fato
da castração química não ter aparentemente o caráter permanente isto não desfaz
o seu sentido discriminador e cruel, atingindo o indivíduo na sua integridade
física ou psíquica, com todas as alterações e anomalias que a inconsequente
hormonioterapia pode trazer. Sua aparência física de afeminado, seus caracteres
sexuais afetados como distribuição de pelos, voz feminina, crescimento das
mamas, localização adiposa anômala ao sexo masculino, somando-se às questões de
ordem interna que passam por doenças graves que vão da hipertensão, à diabetes,
depressão, até o câncer, são situações
que não podem passar sem reparo. A
Constituição Federal é clara neste particular quando afirma de forma imperiosa
no seu artigo 5°, XLIX: “é assegurado aos
presos o respeito à integridade física e mental”.
Ainda que algumas teses, de pouca credibilidade e
sustentação, queiram dar aos índices de testosterona um fator de vinculação à
violência,
pelo fato de que a maioria dos homicidas seja do sexo masculino e esteja numa
faixa etária que vai de 15 a
40 anos, sabe-se que muitos são os fatores que levam um indivíduo à
criminalidade e à violência. A teoria
endocrinológica da criminogênese não encontra mais argumentos em sua defesa.
Com certeza tais idéias vão despertar o fatalismo biológico do positivismo
lombrosiano querendo-se identifica nas taxas hormonais dos indivíduos o seu
grau de periculosidade, criando-se assim
o “hormônio delinqüente”.
Todos
sabem que não existe ninguém predestinado ao crime mesmo sendo ele detentor de
certos índices hormonais nem determinando isso como responsável pela
criminalidade e pela violência que faz transbordar os níveis aceitáveis de
delinquência. Não há determinismo que imponha, por si só, a ação delituosa nem
um índice hormonal elevado que faça alguém delinqüir, mas um conjunto de
fatores crimino-impelentes capazes de gerar o crime, em face das medonhas
contradições sócio-econômicas em que vive o indivíduo e não de sua condição
biológica. A
história registra casos de indivíduos com baixos índices de testosterona e de
sexualidade frustra e rara que foram capazes de cometer delitos de implicação
sexual de extrema gravidade. E o inverso é verdadeiro: indivíduos com índices
altíssimos de testosterora que jamais cometerem qualquer tipo de infração, por
menor que fosse. Por
outro lado, é desolador que o corpo clínico de uma unidade hospitalar, pelo seu
diretor técnico ou pelo seu chefe de serviço, aceite candidamente tais praticar
tais medidas, quando lhe cabia exigir os meios assistenciais adequados para que
o detento venha a cumprir sua pena de forma justa e merecida.
O
diretor técnico ou o chefe de serviço conivente com tal estilo de tratamento
não infringe apenas ao item IV dos Princípios Fundamentais do Código de Ética
Médica, mas também ao Princípio VIII e aos artigos 23 e 25. Senão,
vejamos:
O
ato médico não deve ser exercido de forma capaz de aviltar o ser humano. Ao
médico cabe trabalhar também pelo prestígio e bom conceito da profissão ainda
que certas mentalidades mais pragmáticas tentem deslocar o homem para um plano
ético e político, na qualidade de simples objeto. A
medicina deve constituir um projeto voltado para o bem do Homem e da
Humanidade, sem discriminação ou preconceito de qualquer espécie (Princípio IV).
A
prática da medicina deve ser consagrada pelo livre exercício, como garantia constitucional
e corolário dos princípios liberais. Esta profissão não pode conviver com as
restrições de suas práticas, nem com injunções que possam prejudicar a eficácia
e a correção de seu trabalho, por inspiração de quem quer seja, autoridade ou
não (Princípio VIII).
Mesmo
que uma ordem administrativa ou uma determinação de autoridade venha violentar
sua consciência, o médico não pode aquiescer, porque isso lhe assegura o Código
de Ética. Se um ato médico estiver cercado de constrangimento e humilhações
contra o ser humano, o profissional tem o direito de subverter essa ordem, de
exercer a desobediência civil (art. 23).
A primeira obrigação é ajudar a quem se
encontre sob seus cuidados, qualquer que seja o nível dessas pessoas, qualquer
que seja o crime cometido por elas, quaisquer que sejam os credos e as razões
de quem assim professa. E isto em todas as situações - inclusive nos casos mais
constrangedores, quando tudo parece perdido, dadas as condições mais
excepcionais e precárias. Inconcebível seria, portanto, retirar a condição de
“salvador” do médico e impor-lhe o labéu de algoz, de modo a violentar todos os
postulados e princípios éticos. Na
hora em que o direito da força se instala, negando o próprio Direito, e quando
tudo é paradoxal e inconcebível, ainda assim o respeito pela dignidade humana é
de tal magnitude que a intuição humana tenta protegê-la contra a insânia
coletiva, criando regras que impeçam a prática de crueldades inúteis (art. 25).
[1] Do livro Medicina Legal,
França, GV – 9ª. Edição, Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S/A, 2011.
[1] Membro Titular da Academia
Nacional de Medicina Legal.