Artigo escrito pelo Prof. Genival França
Introdução
Os acidentes
coletivos e catastróficos, de causas naturais ou da inventiva humana,
principalmente quando envolvem um grande número de vitimas, além dos problemas
médico-legais decorrentes da identificação dos mortos e da regularização do
óbito, reclamam alguns procedimentos éticos considerados imperativos,
notadamente no que se refere aos aspectos afetivos, ao respeito da condição
humana e ao clamor da comoção pública. Este assunto tem preocupado muito os
grupos que trabalham com os direitos humanos.
Os meios de
comunicação, embora mostrem interesse no sensacionalismo do tamanho da
catástrofe e do número de vítimas que se encontra em cada um desses acidentes
de massa, pouca atenção têm dado às implicações de ordem afetiva e social,
principalmente no trato ético e do respeito humano às vítimas dessas tragédias.
Chamam-se de
desastres de massa os acidentes coletivos nos quais se verifica grande número
de vítimas graves ou fatais. Tais acidentes são, na maioria das vezes,
decorrentes da forma de convivência das pessoas, levadas a habitar áreas
geográficas reduzidas e de alto índice de concentração demográfica. Some-se a
isso o avanço incontrolável das disponibilidades tecnológicas com a criação
natural do que se rotulou de "risco proveito" ou "risco
criado", conhecido e avaliado, mas de que ninguém abre mão. Cria-se,
queira ou não, uma "tecnologia de catástrofe". Assim, a convivência
humana em grandes edificações, os deslocamentos em transportes coletivos cada
vez mais rápidos, o uso indiscriminado de algumas modalidades de energia e o
emprego assustador das substâncias nocivas, podem trazer para o homem, na sua
necessidade gregária ou na sua ânsia de vencer distâncias, a possibilidade
amarga das grandes tragédias. Pode-se dizer que o homem atual vive a "era
do risco".
Identificação dos mortos
Uma importante
medida a ser tomada, logo após o conhecimento do acidente de massa, é a
solicitação imediata das fichas dactiloscópicas e odontológicas das pessoas
presumivelmente envolvidas na tragédia. Em algumas circunstâncias, a seleção
desse material é fácil, pois as prováveis vítimas já estariam relacionadas -
como nos casos de acidentes de aviação - ou em locais cuja presença era suposta
ou sabida pelos parentes ou conhecidos. Também muito contribui o estudo
comparativo por meio de radiografias antigas, principalmente dos dentes, do
crânio, da face e dos ossos longos com consolidação de fraturas.
Não esquecer
nunca que a identificação médico-legal é um processo técnico-científico de
comprovação individual, objetivo e concreto, não podendo, por isso, ser
fundamentado em simples informações familiares ou de amigos das vítimas. A
certeza da identificação exige a materialidade como argumento de comprovação.
Em suma, a identificação médico-legal não pode ser confundida com o
reconhecimento, pois este é um procedimento empírico, subjetivo e duvidoso de
quem tenta certificar-se de algo que acredita conhecer antes.
Levando-se em
conta os níveis de dificuldade na identificação, os corpos ou partes deles eram
classificados em quatro grupos bem distintos:
1- os facilmente identificáveis, não desfigurados e sem documentação;
2- os relativamente
identificáveis, não desfigurados e sem documentação;
3- os dificilmente
identificáveis, reduzidos a despojos e dependentes de técnicas especiais de
identificação;
4- os de identificação
impossível, em face das precárias condições físicas, à falta dos recursos
necessários e ao fracasso dos métodos utilizados.
Hoje, todavia,
com o advento de novas técnicas de manipulação do DNA, aquelas dificuldades
quase não existem.
O atestado de óbito
Estando o
cadáver ou parte dele identificado num desastre de massa, não há porque negar o
devido atestado de óbito, com a causa mortis determinada e sua efetiva
identidade, facilitando assim o sepultamento mais rápido e de forma
individualizada. No entanto, as repartições médico-legais não podem nem devem
fornecer atestados de pessoas não identificadas, simplesmente baseadas em meras
informações ou conjeturas.
Isto, no entanto, não impede que
qualquer pessoa interessada, por laços de negócios ou de parentesco,
comprovando interesses legítimos, possa pedir a justificação de morte
presumida, cuja competência exclusiva é dos juizes togados. A solicitação deve
ser feita ao juiz da Comarca onde se verificou o sinistro - diante das
dificuldades de obter o atestado de óbito, de justificação judicial de uma ou
de várias pessoas desaparecidas ou de impossível reconhecimento, fundamentada
nos seguintes documentos:
1 - prova da ocorrência policial do acidente;
2 - relação das pessoas desaparecidas e tidas
como presentes no desastre;
3 - declaração do Instituto Médico-Legal de
que foram encontrados corpos ou partes de corpos não identificados.
Depois de
homologada a justificação, caberá à autoridade policial ou aos familiares
solicitarem do Cartório de Registro Civil a anotação desse documento e o
assentamento da morte, ficando depois o Cartório na disposição de fornecer a
Certidão de Óbito para cada família, com a ressalva das circunstâncias que
motivaram tal certidão. Isto está disciplinado no artigo 88 da Lei n° 6.015, de
31 de dezembro de 1973, que assim se expressa: "Poderão os juízes togados
admitir justificação para o assento de óbito de pessoas desaparecidas em
naufrágios, incêndio, terremoto ou outra qualquer catástrofe, quando estiver
provada a sua presença no local do desastre e não for possível encontrar o cadáver
para exame" (1).
A questão
fundamental: a ética nos desastres de massa
Com a
intervenção cada vez maior do homem sobre a natureza, muitos são os riscos
criados para a saúde e para a vida dos indivíduos e da coletividade. E assim
vão ocorrendo situações que exigem atitudes e responsabilidades por parte de
cada um e do conjunto da sociedade, a partir do momento em que o poder sobre a
natureza torna-se mais evidente.
Mesmo que o risco natural não seja da
inventiva humana e não dependa daquela intervenção ou daquele confronto, ele
pode ser previsto e minimizado, desde que os conhecimentos científicos e a
organização da sociedade voltem-se mais para a perspectiva de administrar
melhor os danos causados e evitar as implicações mais graves sobre a vida e a
saúde do homem e sobre o seu meio ambiente.
O humanismo é a
lógica mais simples e o fim da ética social é servir ao humanismo pleno. A
pessoa tem um valor antológico e não pode ser considerada apenas como uma parte
da sociedade, tendo-se em conta que esta se concebe a partir de cada um de nós.
Desse
modo, todas as manifestações que orientam a intervenção humana na previsão,
prevenção e tratamento do desastre de massa, passam necessariamente pelo
conceito do bem comum. Todo indivíduo tem direito à proteção de sua saúde, como
valor conseqüente à sua própria existência. E, por isso, não é justo que se
ponha essa vida em perigo, nem tampouco que sejam tratadas com descaso as
pessoas indefesas ou vítimas de determinadas ocorrências. Só se admite colocar
em perigo a integridade física de uma pessoa quando for necessário salvar seu
bem mais superior que é a sua própria vida. Este é o princípio da totalidade (2).
Mesmo sabendo-se
que as disponibilidades do atendimento podem ser precárias e desordenadas nas
primeiras horas após o desastre - seja pela amplitude do sinistro, seja pela
falta de organização ou estruturação dos planos de emergências -, é fundamento
ético inalienável que todos sejam atendidos sem discriminação, no mais breve
espaço de tempo e na proporção dos meios disponíveis. Se, nas primeiras horas,
apenas estão disponíveis alguns meios para os cuidados mais imediatos, deve-se
dar prioridade àqueles que estão em perigo de vida ou maior grau de sofrimento (princípio da prioridade terapêutica), não se levando em conta a idade, a condição
social, as qualidades intelectuais ou o sexo, mas, tão-só, o das circunstâncias
que levam à iminência da morte.
Outros
defendem a idéia de que devam ser atendidos em primeiro lugar aqueles que
apresentem possibilidades de salvar-se (princípio
da sobrevivência privilegiada). Ou quem primeiro for encontrado (princípio da prioridade temporal).
Outra questão
muito delicada é o que fazer com os corpos ou partes dos corpos não
identificados, depois de esgotados todos os recursos disponíveis. Primeiro
recomenda-se que os corpos relativamente preservados sejam submetidos a uma
revisão completa, para que fique patente nada ter sido esquecido,
considerando-se todos os elementos importantes, inclusive fotografias,
radiografias e fichas dactiloscópicas e odontológicas. Há casos em que está
indicada a retirada dos maxilares superiores e inferior para uma possível
comprovação posterior. A inumação deve ser feita em local conhecido e em sacos
plásticos numerados, para facilitar uma exumação específica, diante do
surgimento de informações adicionais, respeitadas as imposições da legislação
sanitária.
Depois, as
partes menores que ainda permanecerem não identificadas serão também
documentadas e, se a quantidade de tecidos é pequena, se não existe conteúdo
identificável ou se todas as vítimas estão identificadas, devem ser enterradas
ou incineradas.
Além disso, não
se deve esquecer o respeito que se impõe o morto e os cuidados nos
procedimentos que se exigem depois da morte, na dimensão que merece a dignidade
humana. Mesmo se entendendo que a existência da pessoa natural termina com a
morte, tem-se de admitir que não estão dispensados o respeito, a piedade e a
reverência, pois tudo isso tem um significado muito transcendente. Nem mesmo o
tumulto de uma catástrofe, ou o anonimato do cadáver, recomenda a ninguém um tratamento
diferente.
Conclusão
Fica evidente
que, com a existência cada vez mais efetiva de uma "medicina de
risco", em alguns momentos até considerada como "medicina de
catástrofe", já chegou a hora de se trabalhar no sentido de estruturar
essas ações como numa verdadeira especialidade médica, com características e
modos de atuação bem distintos de outras formas de atividades
médico-profissionais. Por isso, necessita, também aqui, de certas posturas
éticas que se exigem na prevenção, condução e atenção das vítimas nos desastres
naturais.
Parte desse
raciocínio é explicada pelo fato de serem os acidentes catastróficos e
coletivos seguidos de grande comoção pública e cercados de muitas dificuldades
na maneira de atender de imediato todos os reclamos das pessoas em geral e, em
particular, dos familiares das vítimas.
Finalmente, é
necessário que a própria sociedade esteja consciente e antecipadamente
preparada para as eventualidades desses sinistros. Quanto melhor for esse
entendimento, maiores serão as oportunidades de evitar os danos e prejuízos
causados à vida e à saúde do homem e ao próprio meio ambiente. Tudo isso
valorizado pelos princípios da solidariedade e da ética social - e com respeito
aos direitos humanos.
Referências Bibliográficas
1. França GV. Medicina
legal. 7ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2004.
2. Sgreccia E, Fasanella G. Bioética y medicina de las catástrofes.
Medicina y Etica 1993:1:115-28.
(*) Do livro Medicina Legal, 8a edição, Editora Guanabara
Koogan S/A, Rio, 2008.