sábado, 16 de fevereiro de 2013

Desastres de Massa - Sugestões para um Itinerário correto de auxílios

Artigo escrito pelo Prof. Genival França

Introdução
Os acidentes coletivos e catastróficos, de causas naturais ou da inventiva humana, principalmente quando envolvem um grande número de vitimas, além dos problemas médico-legais decorrentes da identificação dos mortos e da regularização do óbito, reclamam alguns procedimentos éticos considerados imperativos, notadamente no que se refere aos aspectos afetivos, ao respeito da condição humana e ao clamor da comoção pública. Este assunto tem preocupado muito os grupos que trabalham com os direitos humanos.
Os meios de comunicação, embora mostrem interesse no sensacionalismo do tamanho da catástrofe e do número de vítimas que se encontra em cada um desses acidentes de massa, pouca atenção têm dado às implicações de ordem afetiva e social, principalmente no trato ético e do respeito humano às vítimas dessas tragédias.
Chamam-se de desastres de massa os acidentes coletivos nos quais se verifica grande número de vítimas graves ou fatais. Tais acidentes são, na maioria das vezes, decorrentes da forma de convivência das pessoas, levadas a habitar áreas geográficas reduzidas e de alto índice de concentração demográfica. Some-se a isso o avanço incontrolável das disponibilidades tecnológicas com a criação natural do que se rotulou de "risco proveito" ou "risco criado", conhecido e avaliado, mas de que ninguém abre mão. Cria-se, queira ou não, uma "tecnologia de catástrofe". Assim, a convivência humana em grandes edificações, os deslocamentos em transportes coletivos cada vez mais rápidos, o uso indiscriminado de algumas modalidades de energia e o emprego assustador das substâncias nocivas, podem trazer para o homem, na sua necessidade gregária ou na sua ânsia de vencer distâncias, a possibilidade amarga das grandes tragédias. Pode-se dizer que o homem atual vive a "era do risco".
Identificação dos mortos
Uma importante medida a ser tomada, logo após o conhecimento do acidente de massa, é a solicitação imediata das fichas dactiloscópicas e odontológicas das pessoas presumivelmente envolvidas na tragédia. Em algumas circunstâncias, a seleção desse material é fácil, pois as prováveis vítimas já estariam relacionadas - como nos casos de acidentes de aviação - ou em locais cuja presença era suposta ou sabida pelos parentes ou conhecidos. Também muito contribui o estudo comparativo por meio de radiografias antigas, principalmente dos dentes, do crânio, da face e dos ossos longos com consolidação de fraturas.
Não esquecer nunca que a identificação médico-legal é um processo técnico-científico de comprovação individual, objetivo e concreto, não podendo, por isso, ser fundamentado em simples informações familiares ou de amigos das vítimas. A certeza da identificação exige a materialidade como argumento de comprovação. Em suma, a identificação médico-legal não pode ser confundida com o reconhecimento, pois este é um procedimento empírico, subjetivo e duvidoso de quem tenta certificar-se de algo que acredita conhecer antes.
Levando-se em conta os níveis de dificuldade na identificação, os corpos ou partes deles eram classificados em quatro grupos bem distintos:
1- os facilmente identificáveis, não desfigurados e sem documentação;
2- os relativamente identificáveis, não desfigurados e sem documentação;
3- os dificilmente identificáveis, reduzidos a despojos e dependentes de técnicas especiais de identificação;
4- os de identificação impossível, em face das precárias condições físicas, à falta dos recursos necessários e ao fracasso dos métodos utilizados.
Hoje, todavia, com o advento de novas técnicas de manipulação do DNA, aquelas dificuldades quase não existem.
 O atestado de óbito
Estando o cadáver ou parte dele identificado num desastre de massa, não há porque negar o devido atestado de óbito, com a causa mortis determinada e sua efetiva identidade, facilitando assim o sepultamento mais rápido e de forma individualizada. No entanto, as repartições médico-legais não podem nem devem fornecer atestados de pessoas não identificadas, simplesmente baseadas em meras informações ou conjeturas.
Isto, no entanto, não impede que qualquer pessoa interessada, por laços de negócios ou de parentesco, comprovando interesses legítimos, possa pedir a justificação de morte presumida, cuja competência exclusiva é dos juizes togados. A solicitação deve ser feita ao juiz da Comarca onde se verificou o sinistro - diante das dificuldades de obter o atestado de óbito, de justificação judicial de uma ou de várias pessoas desaparecidas ou de impossível reconhecimento, fundamentada nos seguintes documentos:
1 - prova da ocorrência policial do acidente;
2 - relação das pessoas desaparecidas e tidas como presentes no desastre;
3 - declaração do Instituto Médico-Legal de que foram encontrados corpos ou partes de corpos não identificados.
Depois de homologada a justificação, caberá à autoridade policial ou aos familiares solicitarem do Cartório de Registro Civil a anotação desse documento e o assentamento da morte, ficando depois o Cartório na disposição de fornecer a Certidão de Óbito para cada família, com a ressalva das circunstâncias que motivaram tal certidão. Isto está disciplinado no artigo 88 da Lei n° 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que assim se expressa: "Poderão os juízes togados admitir justificação para o assento de óbito de pessoas desaparecidas em naufrágios, incêndio, terremoto ou outra qualquer catástrofe, quando estiver provada a sua presença no local do desastre e não for possível encontrar o cadáver para exame" (1).  
A questão fundamental: a ética nos desastres de massa
Com a intervenção cada vez maior do homem sobre a natureza, muitos são os riscos criados para a saúde e para a vida dos indivíduos e da coletividade. E assim vão ocorrendo situações que exigem atitudes e responsabilidades por parte de cada um e do conjunto da sociedade, a partir do momento em que o poder sobre a natureza torna-se mais evidente.
Mesmo que o risco natural não seja da inventiva humana e não dependa daquela intervenção ou daquele confronto, ele pode ser previsto e minimizado, desde que os conhecimentos científicos e a organização da sociedade voltem-se mais para a perspectiva de administrar melhor os danos causados e evitar as implicações mais graves sobre a vida e a saúde do homem e sobre o seu meio ambiente.
O humanismo é a lógica mais simples e o fim da ética social é servir ao humanismo pleno. A pessoa tem um valor antológico e não pode ser considerada apenas como uma parte da sociedade, tendo-se em conta que esta se concebe a partir de cada um de nós.
Desse modo, todas as manifestações que orientam a intervenção humana na previsão, prevenção e tratamento do desastre de massa, passam necessariamente pelo conceito do bem comum. Todo indivíduo tem direito à proteção de sua saúde, como valor conseqüente à sua própria existência. E, por isso, não é justo que se ponha essa vida em perigo, nem tampouco que sejam tratadas com descaso as pessoas indefesas ou vítimas de determinadas ocorrências. Só se admite colocar em perigo a integridade física de uma pessoa quando for necessário salvar seu bem mais superior que é a sua própria vida. Este é o princípio da totalidade (2).
Mesmo sabendo-se que as disponibilidades do atendimento podem ser precárias e desordenadas nas primeiras horas após o desastre - seja pela amplitude do sinistro, seja pela falta de organização ou estruturação dos planos de emergências -, é fundamento ético inalienável que todos sejam atendidos sem discriminação, no mais breve espaço de tempo e na proporção dos meios disponíveis. Se, nas primeiras horas, apenas estão disponíveis alguns meios para os cuidados mais imediatos, deve-se dar prioridade àqueles que estão em perigo de vida ou maior grau de sofrimento (princípio da prioridade terapêutica), não se levando em conta a idade, a condição social, as qualidades intelectuais ou o sexo, mas, tão-só, o das circunstâncias que levam à iminência da morte.
Outros defendem a idéia de que devam ser atendidos em primeiro lugar aqueles que apresentem possibilidades de salvar-se (princípio da sobrevivência privilegiada). Ou quem primeiro for encontrado (princípio da prioridade temporal).
Outra questão muito delicada é o que fazer com os corpos ou partes dos corpos não identificados, depois de esgotados todos os recursos disponíveis. Primeiro recomenda-se que os corpos relativamente preservados sejam submetidos a uma revisão completa, para que fique patente nada ter sido esquecido, considerando-se todos os elementos importantes, inclusive fotografias, radiografias e fichas dactiloscópicas e odontológicas. Há casos em que está indicada a retirada dos maxilares superiores e inferior para uma possível comprovação posterior. A inumação deve ser feita em local conhecido e em sacos plásticos numerados, para facilitar uma exumação específica, diante do surgimento de informações adicionais, respeitadas as imposições da legislação sanitária.
Depois, as partes menores que ainda permanecerem não identificadas serão também documentadas e, se a quantidade de tecidos é pequena, se não existe conteúdo identificável ou se todas as vítimas estão identificadas, devem ser enterradas ou incineradas.
Além disso, não se deve esquecer o respeito que se impõe o morto e os cuidados nos procedimentos que se exigem depois da morte, na dimensão que merece a dignidade humana. Mesmo se entendendo que a existência da pessoa natural termina com a morte, tem-se de admitir que não estão dispensados o respeito, a piedade e a reverência, pois tudo isso tem um significado muito transcendente. Nem mesmo o tumulto de uma catástrofe, ou o anonimato do cadáver, recomenda a ninguém um tratamento diferente.
 Conclusão
Fica evidente que, com a existência cada vez mais efetiva de uma "medicina de risco", em alguns momentos até considerada como "medicina de catástrofe", já chegou a hora de se trabalhar no sentido de estruturar essas ações como numa verdadeira especialidade médica, com características e modos de atuação bem distintos de outras formas de atividades médico-profissionais. Por isso, necessita, também aqui, de certas posturas éticas que se exigem na prevenção, condução e atenção das vítimas nos desastres naturais.
Parte desse raciocínio é explicada pelo fato de serem os acidentes catastróficos e coletivos seguidos de grande comoção pública e cercados de muitas dificuldades na maneira de atender de imediato todos os reclamos das pessoas em geral e, em particular, dos familiares das vítimas.
Finalmente, é necessário que a própria sociedade esteja consciente e antecipadamente preparada para as eventualidades desses sinistros. Quanto melhor for esse entendimento, maiores serão as oportunidades de evitar os danos e prejuízos causados à vida e à saúde do homem e ao próprio meio ambiente. Tudo isso valorizado pelos princípios da solidariedade e da ética social - e com respeito aos direitos humanos.

Referências Bibliográficas
1. França GV.  Medicina legal. 7ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2004.
2. Sgreccia E, Fasanella G. Bioética y medicina de las catástrofes. Medicina y Etica 1993:1:115-28.

(*) Do livro Medicina Legal, 8a edição, Editora Guanabara Koogan S/A, Rio, 2008.