domingo, 29 de março de 2020

DESASTRES DE MASSA


Os desastres de massas, também denominados acidentes de massa ou grandes catástrofes definem-se como qualquer situação que, resultante da mesma ocorrência, ocasiona um número de vítimas, mortais ou não, superior à capacidade de resposta dos meios de salvamento e socorro existentes no local. 

Estratégias da intervenção médico-legal nos desastres de massas

Os desastres de massas podem ser de dois tipos: 
ð  Abertos - quando não se conhecem as vítimas, quem são ou quantas são (terramotos, inundações, incêndios, atentados terroristas, acidentes rodoviários em cadeia, etc.);
ð  Fechados - quando as vítimas são conhecidas, sabe-se quem são e quantas são (acidentes aéreos, naufrágios, acidentes ferroviários, etc., quando há listas de passageiros). 
Podemos dividir os objectivos da intervenção médico-legal em dois grandes grupos: os objectivos imediatos, que são a recolha das vítimas mortais e a execução das autópsias médico-legais, e os objectivos importantes, que tem que ver com a reconstrução exacta dos factos e a colheita de provas para fins jurídicos e criminais.
Nos desastres de massas, a autópsia médico-legal tem como objectivos fundamentais: 
1º.     Identificação das vítimas; 
2º.     Determinação (ou confirmação) da causa da morte; 
3º.     Outros aspectos secundários, como a determinação da data ou do momento da morte.

Os procedimentos necrópsicos variam conforme a vítima for considerada ou não uma “vítima-chave”. Os cadáveres dos indivíduos implicados de alguma maneira no evento, como motoristas, pilotos, maquinistas, presumíveis terroristas, ou outros, devem ser examinados com maior detalhe, nomeadamente no referente à investigação toxicológica (álcool, drogas de abuso, medicamentos, monóxido de carbono, etc.) e aos exames histopatológicos (exclusão de causas de morte súbita natural). O exame necrópsico das restantes vítimas poderá ser mais abreviado.

Actuação sobre os cadáveres no local da ocorrência
Cabe ao INEM a prestação dos cuidados médicos de emergência nos locais atingidos, efectuando a triagem dos sobreviventes para os canais de evacuação primária e secundária e verificando os óbitos nos casos das vítimas mortais. Nesta tarefa, os médicos do INEM utilizam geralmente etiquetas devidamente estruturadas e fornecidas pelo Serviço Nacional de Protecção Civil, designadas como “Fichas de Levantamento até à Primeira Organização Hospitalar”. Estas fichas, devidamente preenchidas pelo médico no local, são introduzidas em bolsas plásticas e amarradas a cada vítima para que o pessoal que colabora na evacuação se possa orientar no destino a dar a cada uma e os médicos dos postos avançados de atendimento ou das organizações hospitalares secundárias tenham informação sobre as condições do doente e os primeiros auxílios já prestados. Para além disso, funcionam como certificado de verificação do óbito. Nelas deve constar a data e hora da verificação, a localização da vítima, o estado do cadáver (completo, mutilado, carbonizado, etc.) e a presença de espólio a acompanhar. Para além de auxiliar o médico da Equipa Médico-Legal (EML) na elaboração do relatório de cada vítima, os elementos constantes nesta etiqueta poderão substituir o registo fotográfico do cadáver no local. A catalogação dos restos mortais recuperados em “cadáver” (body) ou “parte de cadáver” (body part), reveste-se de extrema importância para a contabilização final das vítimas do desastre. Uma única vítima pode estar constituída por várias “partes de cadáver”. Os cadáveres, devidamente etiquetados serão conduzidos à EML, no sítio onde deverá funcionar o necrotério provisório.
Actuação da Equipa de Catástrofe do INML
Cabe a cada médico da EML executar as autópsias médico-legais das vítimas. Neste contexto, são funções destes médicos:
a.    Colaborar com os elementos da Policia Judiciária na identificação dos cadáveres, permitindo e auxiliando na colheita de sinais morfológicos genéricos de identificação, impressões digitais, fórmula buco-dentária, etc;
b.   Colaborar também com os elementos da Policia Judiciária na elaboração do registo fotográfico do cadáver, bem como no registo do espólio (peças de vestuário, etc);
c.    Efectuar o exame externo e interno do cadáver;
d.   Recolher todo o material estranho encontrado no cadáver, nomeadamente projécteis de arma de fogo, fragmentos metálicos, peças de componentes mecânicos, etc.;
e.    Recolher todas as amostras biológicas necessárias para a realização de exames complementares;
f.    Manter o Médico Coordenador permanentemente a par dos acontecimentos, comunicando-lhe constantemente todos os achados necrópsicos relevantes.
g.   Elaborar os relatórios das autópsias.

Identificação das vítimas
O perito médico-legal é responsável por estabelecer a identidade das vítimas utilizando os seguintes métodos: 
A.      Presuntivos
1.   Identificação visual directa ou fotográfica, se visualmente reconhecíveis; 
2.   Espólio pessoal (p.ex., carteiras, jóias), circunstâncias, características físicas, tatuagens e dados antropológicos. 
B.      Confirmativos
1.   Impressões digitais;
2.   Odontologia;
3.   Radiologia;
4.   Análise de ADN;
5.   Antropologia Forense. 
1.      Impressões digitais
As impressões digitais são uma forma de identificar vítimas desconhecidas e confirmar a identificação daquelas que são reconhecidas com incerteza por outros meios (p.ex. descrições de testemunhas ou fotografias). 
2.      Odontologia
Os dentes são estruturas fundamentais à identificação médico-legal, em virtude da sua resistência (à putrefacção, ao calor, aos traumatismos e à acção de certos agentes químicos) e especificidade (cada dentadura é única). 
Entre as características individualizantes a analisar contam-se: 
ð  número de dentes;
ð  alterações morfológicas congénitas ou adquiridas (hábitos, profissão, etc);
ð  alterações da posição ou rotação;
ð  alterações patológicas (cáries) ou traumáticas;
ð  existência de tratamentos ortodônticos (almágamas, coroas, pontes, próteses fixas ou amovíveis). 
Pode ser realizado o estudo radiológico dos dentes para posterior comparação com Rx feitos em vida. 

3.      Radiologia
A radiologia é um passo precoce fundamental no processamento dos restos mortais e na confirmação ou exclusão de uma potencial identidade, servindo como método primário de identificação. 

4.      Análise de ADN
Em casos envolvendo desastres de massa e/ou restos mortais extremamente fragmentados, o ADN proporciona um componente essencial no processo de identificação, permitindo: 
a.     Identificar as vítimas;
b.     Associar restos mortais fragmentados.
São recolhidas três tipos de amostras biológicas para análise de ADN:
a)       Restos mortais; 
b)      Referências familiares apropriadas; 
c)       Referências directas (p.ex. espécimes biológicos e bens pessoais)

5.      Antropologia Forense
Trata-se de uma identificação morfológica. Os estudos de identificação baseiam-se, sobretudo, na análise dos ossos, os quais conservam aspectos da vida do indivíduo que podem persistir muito para além da morte e serem preciosos à sua identificação. É o caso de fracturas ou calos de fracturas, de sequelas de determinadas patologias ou mesmo de malformações. Esta técnica só será bem sucedida se, para além das características gerais de identificação do indivíduo, apuradas através de métodos reconstrutivos (ex: sexo, altura, idade aproximada), for também possível proceder a um estudo comparativo que permita determinar características individualizantes. Este sucesso dependerá, também, da existência de material suficiente para a identificação.
Relativamente às situações mortais, podemos considerar como objectivos da Antropologia Forense:
1.       Determinar identidade do indivíduo;
-     origem dos restos (humana, animal, vegetal, outra);
-     características gerais de identificação (sexo, idade, altura, raça);
-     características individualizantes (sinais particulares);
2.       Determinar data da morte;
3.       Determinar causa da morte;
4.       Interpretar as circunstâncias da morte.

1.       Identidade
Determinar a espécie dos restos cadavéricos ou a origem do material constitui um passo fundamental pois, não raramente, trata-se de restos de animais ou até de objectos (ex: bonecos de plástico encontrados em locais suspeitos). Em geral uma observação atenta do(s) osso(s) permite fazer o diagnóstico, existindo contudo certas técnicas a que pode ser feito recurso como sejam a determinação do seu peso, da sua densidade ou índice medular, ou a análise das suas características histológicas, radiológicas ou imunológicas. As características gerais de identificação são relativas a vários aspectos, entre os quais o sexo, a idade, a altura e a raça. A determinação do sexo baseia-se nas características morfológicas de certos ossos, como os da bacia. Em geral nos homens os ossos são mais robustos (com maior predominância do volume epifisário relativamente ao volume da diáfise) e com mais marcas das inserções musculares do que no caso das mulheres; nas crianças esta determinação é mais difícil devido à falta de diferenciação de certas características sexuais. A determinação da idade obedece a diferentes regras conforme se trate de um feto, de uma criança ou jovem ou de um adulto. Para os fetos usam-se a fórmulas de Balthazard e Dervieux: Idade (em dias) = comprimento do feto (em centímetros) x 5,6. No caso de apenas existirem fragmentos ou ossos isolados, utilizam-se tabelas para calcular o comprimento do feto e, através deste, determina-se a idade. No caso das crianças pequenas a determinação da idade tem por base o seu estádio de desenvolvimento. No caso das crianças mais velhas a idade pode ser determinada através dos dentes (decíduos e definitivos, com base em tabelas), através das epífises de crescimento dos ossos longos ou dos núcleos de ossificação de outros ossos (ex: suturas cranianas), ou através do comprimento dos ossos longos. Contudo, esta determinação corresponde apenas a uma estimativa, não se tratando de uma avaliação exacta. 
No adulto recorre-se, geralmente, à análise dos dentes ou das alterações a nível da sínfise púbica podendo, também, proceder-se ao estudo da fusão das suturas cranianas quando não existam dentes ou ossos da bacia. Podem ainda ser tidas em conta alterações que tendem a surgir com a idade, como alterações degenerativas ósteo-articulares. A determinação da altura pode ser feita através da medição do esqueleto (método anatómico) ou, caso este não exista na sua totalidade, através da medição dos ossos longos. Esta avaliação baseia-se na proporção constante entre este comprimento e a altura do indivíduo (0,8). Na determinação da raça (afinidade populacional) geralmente consideram-se as variações dos traços crâneo-faciais (prognatismo facial inferior, conformação do malar ou do palato, proporção das superfícies orbitárias e nasal, características da abertura do nariz e do bordo nasal inferior e certos estigmas dentários).
As características individualizantes correspondem a aspectos específicos que podem caracterizar o indivíduo, através do método comparativo de identificação, com base em elementos fornecidos por pessoas supostamente conhecidas da vítima (ex: fotografias, registos clínicos, sobretudo da medicina dentária, RX, antecedentes patológicos ou traumáticos, hábitos, etc.). Podem valorizar-se aspectos anatómicos próprios do sujeito, como a morfologia dos seios frontais, sinais característicos de determinadas profissões ou hábitos (alterações nos dentes ou pigmentação das faneras), marcas de traumatismos antigos ou recentes (fracturas, calos ósseos, amputações, dismorfias) ou de determinadas doenças (infecções, tumores, doenças articulares ou endócrinas ou, ainda, perturbações nutritivas). A comparação com as características encontradas pode ser feita com base em estudos radiográficos, comparação fotográfica (sobreposição de imagem em computador pesquisando-se a existência de concordância entre as linhas e curvas da face com pontos do esqueleto) ou reconstrução da face.
2.       Data da morte
A determinação da data da morte é muito complexa, pois na sua maioria, trata-se de casos em avançado estado de decomposição cadavérica. Existem, contudo, uma série de metodologias orientadoras, entre elas: fase de decomposição cadavérica; estudo da fauna necrófaga encontrada no corpo (entomologia forense); estudo das modificações da composição química do osso (relação entre matéria orgânica e inorgânica).
3.       Causa da morte
A causa da morte, no caso de indivíduos esqueletizados só pode ser estudada relativamente a situações que deixem marcas nestas estruturas, como é o caso de certos traumatismos com fracturas ou ferimentos por armas de fogo ou, ainda, de intoxicações crónicas pelo arsénio. 
4.       Circunstâncias da morte
Esta é em geral difícil e as conclusões escassas, limitando-se geralmente à análise da existência, ou não, de sinais de violência e da interpretação da vitalidade de certas lesões (diagnóstico diferencial com lesões pós-mortem provocadas por animais ou outros elementos da natureza - tafonomia).